Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Venho perguntar qual a forma correta de se dizer a seguinte expressão:

«Lembro-me como se fosse ontem...», ou «lembro-me como se fosse hoje...»

Resposta:

As duas formas são possíveis e acabam por produzir um efeito de sentido equivalente.

Por um lado, a expressão «como se fosse ontem» coloca o locutor num momento passado, por efeito da memória. Por outro, a expressão «como se fosse hoje» presentifica um momento passado, trazendo-o para o presente por efeito da memória. Daqui resulta uma similitude de sentidos.

Encontramos registos destas estruturas em autores consagrados, como se observa pelos exemplos1:

(1) «– Há-de lembrar-se sempre com saudades, Joana, de quando se cozia o pão cá em casa e eu vinha, ao sair da aula, buscar o bolo, que você me guardava no forno. Lembra-se?

        – Ora, como se fosse hoje.» (Júlio Dinis, As pupilas do senhor reitor)

(2) «– A mim lembra-me, como se fosse ontem.» (Machado de Assis, Quincas Borba

 Disponha sempre!

 

1. Recolhidos no Corpus do Português, coordenado por Mark Davies.

Concordância no feminino
Casos particulares

Qual das frases está correta: «Maria é uma das vencedoras» / «Maria é um dos vencedores»? Esta é a questão que motiva o apontamento da professora Carla Marques

(Apontamento divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2)

Pergunta:

Gostaria de saber que recursos expressivos estão presentes nas seguintes frases, retiradas da obra Vanessa vai à luta de Luísa Costa Gomes (texto dramático):

1) «Oh, pobre de ti... nem um par de jeans... nem uma camisolinha de caxemira... nem um par de sabrinas douradas...»

2) «Que fixe! [...] Obrigada Pai! Obrigada Mãe! Obrigada Rodrigo! Que bom dia de anos! Que grande festa!»

Eu penso que tanto na 1.ª como na 2.ª existe uma anáfora. Na 1.ª, a anáfora é relativa à repetição do vocábulo nem, e na 2.ª a anáfora deve-se à repetição do que.

No entanto, parece-me que na frase 1 podemos assumir que existe igualmente uma enumeração, neste caso, de peças de roupa que a personagem não tem para vestir. No caso da frase 2, não sei se existe mais algum recurso para além daquele que já referi previamente.

Por fim, gostaria de esclarecer uma dúvida: existe algum recurso expressivo denominado repetição e, se sim, como se distingue da anáfora?

Obrigada pela vossa atenção!

Fico a aguardar uma resposta!

Obrigada.

Resposta:

Nas frases apresentadas pela consulente estão presentes diferentes recursos expressivos.

 No segmento transcrito em (1), identificamos a anáfora e a enumeração:

(1) «Oh, pobre de ti... nem um par de jeans... nem uma camisolinha de caxemira... nem um par de sabrinas douradas...»

Neste momento do texto, identificamos a anáfora da conjunção nem, em início de cada um dos elementos coordenados. Este recurso associa-se à enumeração dos bens a que, segunda a Fada Marina, a personagem Vanessa não tinha, o que a impediria de ir a uma festa. Estes dois recursos combinam-se, assim, para intensificar a intenção irónica relativamente a estereótipos ligados à infância e à educação das meninas.

No segmento textual transcrito em (2), identificamos a anáfora:

(2) «Que fixe! [...] Obrigada Pai! Obrigada Mãe! Obrigada Rodrigo! Que bom dia de anos! Que grande festa!»

A personagem recorre à anáfora da interjeição «Obrigada!» e de seguida do «que» exclamativo para intensificar o seu sentimento de alegria perante as prendas recebidas. Neste caso, não consideramos que esteja presente a enumeração porque não se apresentam elementos de um dado conjunto. 

Por fim a repetição pode ser entendida como um recurso linguístico do qual se retira expressividade, mas não é propriamente uma figura de estilo. É antes um recurso da língua que está na base de algumas figuras estilísticas como a anáfora, por exemplo.

Disponha sempre!

Pergunta:

Li uma explicação vossa acerca da expressão «sendo que», que também me parece ser um outro "bordão linguístico" questionável.

Na frase apresentada, é aceitável que se use tal expressão? É que não estou a associá-la a um valor de causa...

«As pessoas confundem amor e paixão, SENDO QUE são coisas diferentes.»

Obrigado.

Resposta:

A construção afasta-se dos usos que são considerados corretos de um ponto de vista normativo.

A expressão «sendo que» pode ser usada com um valor causal, como equivalente de «visto que»:

(1) «Sendo que vai chover, não vamos sair.»

Autores como Napoleão Mendes de Almeida1 e Maria Helena Moura Neves2 condenam os usos de «sendo que» que se afastam deste valor causal. Nesta perspetiva, a frase apresentada pelo consulente deverá ser reformulada de forma a evitar esta estrutura. Eis uma possibilidade:

(2) «As pessoas confundem amor e paixão, que são, porém, coisas diferentes.»

Note-se, porém, que as construções com «sendo que» com valores distintos da causalidade são, contudo, muito frequentes nos usos linguísticos. É comum o seu uso com o valor semântico de contraste simples, indicando uma ressalva, tal como se observa na frase seguinte retirada do Corpus do Português, de Mark Davies:

(3) «Cada pergunta tem três respostas possíveis, sendo que apenas uma delas é a correcta.» ("Considera-se um bom cibernauta?" In Corpus do Português)

Outros valores de condicionalidade ou de concessividade podem ser identificados em usos particulares de «sendo que».

Estas últimas considerações evidenciam um fenómeno linguístico em evolução que, todavia, não deve ser mobilizado se se pretende um texto que se enquadre nos preceitos mais normativos.

Disponha sempre!

 

1. Ver esta resposta.

2. Ver esta r...

Pergunta:

Na frase «O canto da sua boca encurvou de uma forma desafiadora», o verbo encurvou está correto, ou deve dizer-se antes «O canto da sua boca encurvou-se de uma forma desafiadora»?

Ou é preferível curvou-se?

Resposta:

Todas as possibilidades são admissíveis, pois o verbo encurvar pode ser usado como transitivo direto, como intransitivo ou como pronominal.

Assim, na frase apresentada pela consulente, o verbo pode ser usado intransitivamente, com o significado de «formar curva; dobrar»1:

(1) «O canto da sua boca encurvou de uma forma desafiadora.»

É, no entanto, também possível usar o verbo com a sua forma pronominal:

(2) «O canto da sua boca encurvou-se de uma forma desafiadora.»

Neste caso, o pronome -se acrescenta um valor de ação reflexa à frase, o que associa ao «canto da boca» uma certa animização.

A utilização do verbo na forma pronominal curvar-se é também possível com o valor de «tornar(-se) curvo; envergar(-se) em arco ou em ângulo; arquear(-se)».

A escolha dependerá, portanto, da sensibilidade linguística do autor da frase e, eventualmente, das suas intenções estilísticas.

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário Houaiss em linha.