Ida Rebelo - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Ida Rebelo
Ida Rebelo
8K

Ida Rebelo é uma linguista brasileira. Doutora e mestre em Estudos da Linguagem, Descrição do Português para o Ensino de Português Língua Estrangeira, pelo Departamento de Letras, da PUC - Rio de Janeiro; licenciada em Letras Português-Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Estudar português» e «estudar o português». Existe alguma diferença entre as opções acima? Uma explicação que me foi dada é que a primeira exprime a ideia de estudar a disciplina de português, enquanto a segunda insiste mais na ideia de estudar a língua. Mas parece-me uma daquelas explicações espontâneas.

Se as duas possibilidades são corretas, há alguma diferença entre elas em termos de registo?

É que os meus alunos que estudaram no Brasil sempre dizem o segundo...

Agradeço desde já.

Resposta:

No caso apresentado, não parece haver razão gramatical que imponha o artigo definido. Os dois usos são possíveis com um pequeno matiz semântico, mas não se pode pensar que no português do Brasil se prefira «estudar o português» a «estudar português». Aliás, é de notar que a 1.ª edição brasileira do Dicionário Houaiss (2001) atesta o emprego de  inglês, alemão, português sem artigo definido, quando estes nomes de línguas ocorrem associados, por exemplo, ao verbo falar:

«[...] transitivo direto, transitivo indireto, bitransitivo e pronominal 4 saber exprimir(-se) em outro idioma que não o seu Ex.: <fala inglês fluentemente> <o tempo todo falou(-lhes) numa língua desconhecida> <falavam-se em alemão>  transitivo direto 5 Rubrica: lingüística.
comunicar-se com outro(s) falante(s) segundo um sistema definido próprio de uma comunidade lingüística, ou seja, por meio de uma determinada língua Ex.: <f. português> <f. vários idiomas> [...].»

O que se diz acerca do verbo falar pode ser generalizado a outros verbos estudar, ensinar, aprender ou saber, ou seja, usam-se muitas vezes, quer em Portugal, quer no Brasil, os nomes de línguas sem artigo definido junto do verbos mencionados.

Também no português em geral, independentemente da variedade, se omite geralmente o artigo definido em construções como «saber português/inglês/turco», «falar português/inglês/turco», «aprender português/inglês/turco», à semelhança de outros nomes que se referem a atividades do domínio artístico ou científico («saber música/matemática») e se comportam como nomes não contáveis.

Pergunta:

Meu professor ensinou [...] que o correto seria «Os olhos dela são azul». Justificou informando que a expressão «da cor» estaria subentendida. Por exemplo:

«Os olhos dela são azul.»

«Os olhos dela são da cor azul.»

«Camisas verde.»

«Camisas da cor verde.»

«Calças preta.»

«Calças da cor preta.»

Enfim, faz sentido a explicação dada por ele? Eu acho controversa a questão, as duas formas são corretas, tanto por concordância, «são azuis», como pela locução subentendida «da cor», camisas «da cor» verde. Com essas ponderações, busco informações abalizadas dadas por vocês, especialistas no assunto.

Resposta:

Os nomes de cor são usados como adjetivos e, portanto, concordam em género e número com o substantivo qualificado por eles.

Essas palavras são usadas como substantivos apenas para designar a entidade do mundo real que representam: «o verde não lhe fica bem»; «usar verde da paz».

Há casos em que usamos substantivos para atribuir a um outro substantivo a característica da cor, nesses casos, usa-se a expressão «da cor (de)» antes do termo substantivo escolhido como qualificador: «blusas da cor creme», «blusas cor de creme» ou «blusas creme»; «sapatos‎ cor de ouro velho» ou «sapatos ouro velho»; «vestidos rosa» ou «vestidos cor de rosa»; «olhos cor de esmeralda» ou «olhos esmeralda». Nos casos mencionados e em outros com as mesmas características, podemos omitir a expressão «da cor de» e não flexionar o nome, pois a expressão «da cor de» está implícita.

Voltando aos nomes de cor – azul, amarelo, branco, etc. –, não encontro outro uso/significado para os mesmos que não seja o de atribuir a qualidade de uma cor ao substantivo que acompanham e, como tal, devem concordar em género e número com o substantivo que determinam. Exceto nos casos dos adjetivos compostos que já se encontram descritos em qualquer gramática.

Creio, portanto, que o professor em questão se equivoca ao generalizar uma regra que se aplica exclusivamente aos casos em que a qualidade da cor provém de um substantivo concreto.

Pergunta:

Sempre surgem críticas referentes ao modo nordestino de pronunciar as vogais e e o de sílabas átonas. O famoso gramático Napoleão Mendes chegou a dizer que tais vogais em sílabas átonas devem ser proferidas de maneira fechada, como de fato é a pronúncia dos moradores do Sudeste e do Sul do Brasil. Algumas pessoas chegam ao ponto de asseverar que a pronúncia nordestina, além de ser feia, é também errada. A questão é tão séria, que alguns nordestinos, quando vão a São Paulo ou a outros lugares daquelas regiões supramencionadas, ficam receosos de abrir a boca para que não passem por constrangimentos. Ora, de uma vez por todas, constitui erro pronunciar abertamente as vogais e e o quando fazem parte de sílabas átonas? Como exemplos, cito algumas palavras: PErnambuco, rEvElação, REcife, prOgrEssivo etc. Nesses exemplos, o E e O foram escritos com maiúscula para dizer que são prolatados de forma aberta.

Espero vossa abalizada opinião, que agradeço desde já

Resposta:

Infelizmente, «o famoso gramático Napoleão Mendes» deve ter saltado a leitura de um ainda mais famoso estudioso da língua, Antenor Nascentes, que já em 1958, quando iniciou a organização do primeiro mapa dialetológico brasileiro, apontava para duas grandes áreas dialetológicas no Brasil que se fazem representar pela execução dos fonemas /e/ e /o/ em posição pretônica. No Norte, essas vogais soam abertas, e no sul, fechadas. A título informativo, Castilho, 2010, clarifica o que se entende como Norte e Sul do Brasil em termos de fala e ratifica, cinco décadas depois, as afirmações de Nascentes sobre a pronúncia das vogais átonas pretônicas. «O falar do Norte compreende dois subfalares, o amazônico e o nordestino. O falar do Sul compreende quatro subfalares: o baiano, o mineiro, o fluminense e o sulista.»

Há, porém, uma observação que me parece necessária quando se trata de dialetologia, ou seja, do estudo das variedades geográficas de uma língua. Por um lado, a língua, como fato social, é passível de distinções conforme os grupos de falantes observados, por outro lado, por mais que cada grupo assevere que é o seu modo de falar o mais agradável ao ouvido, isso será sempre uma questão subjetiva e psicológica. As pessoas classificam de feio ou bonito segundo a sua própria miopia ou experiência. Em geral, quem tem menos experiência e visão mais limitada é quem é mais crítico com o outro, incapaz de medir a sua própria ignorância.

Haveria muitas questões a considerar se fôssemos comentar conceitos de erro, variantes fonológicas e variedades geográficas do português do Brasil. Para não alongar demasiado uma resposta que se quer breve e direta, recomendo ao consulente que siga usando os seus sonoros /e/ e /o/ pretônico que encantam a plateia e identificam tão bem os oriundos de uma região interessantíssima como...

Reagindo a um artigo de António Pinto Ribeiro, intitulado "Para acabar de vez com a lusofonia", a linguista luso-brasileira Ida Rebelo contrapõe: «Dizer que lusofonia é invenção fascista e manipuladora é como insistir que temos de pertencer a qualquer coisa, menos à língua que nos serve de instrumento de expressão e crescimento.» Estas e outras considerações, escritas expressamente para o Ciberdúvidas, encontram-se no texto que a seguir se apresenta.

 

Pergunta:

Em «Aos poucos surpreendi a mim, que nunca fui de bichos, e na infância não os tive», quero saber a função sintática do pronome relativo e a função sintática de «de bichos», de acordo com a norma brasileira.

Grato!

Resposta:

A função sintáctica do pronome relativo é a do elemento por ele substituído na oração, ou seja, sujeito, uma vez que o relativo substitui o sujeito do verbo ser em «nunca fui de bichos».

O constituinte «de bichos» faz parte da expressão cristalizada «ser de», significando «gostar de» ou «ter afinidade com». Trata-se de um fenómeno ainda em estudo tanto por brasileiros como portugueses. Faz parte das predicações com verbo-suporte, onde verbo e nome ou expressão nominal compõem um único significado. Como acredito que a consulta tem objectivos mais imediatos e menos investigativos, deixo de lado essas considerações e sugiro que classifique a referida expressão como predicativo do sujeito, pois a expressão atribui uma característica ao sujeito do verbo. Poder-se-ia desdobrar a frase em: «Eu não sou uma pessoa que goste de bichos», onde a parte em itálico tem, igualmente, função de predicativo do sujeito.

Para maiores esclarecimentos, sugiro a consulta de:

2000, Baptista, Jorge. Sintaxe dos nomes predicativos construídos com o verbo-suporte SER DE. (Tese de Doutoramento/PhD Thesis). Faro: Universidade do Algarve (publicada conjuntamente pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia e pela Fundação Calouste Gulbenkian, 2005).